Qual Brasil está acima de tudo e qual Deus está acima de todos?
Brasilidade, por Thaís Gomez |
Eu tinha aprendido que ser brasileiro era gostar de futebol e pular carnaval.
Eu não gostava de futebol e não pulava carnaval.
Mais tarde aprendi que o Brasil era um lugar ruim pra se viver justamente por causa do futebol e do carnaval, pois era só pra isso que o brasileiro vivia e não trabalhava, e não se desenvolvia. O futebol não exigia estudo e tomava tempo, o Carnaval, além de fazer essas duas coisas, ainda trazia promiscuidade para os lares brasileiros, era cultura inútil. Baixa cultura.
Nós deveríamos nos espelhar no Sonho Americano ou na glória européia.
Nós deveríamos dar preferência à era de ouro da humanidade que se concentrava toda na Europa, entre o auge do Império Greco-Romano e a ciência moderna.
Afinal, foi a Europa que trouxe a civilização ao mundo.
O brasileiro comum era preguiçoso, malandro, atrasado (em diversos sentidos), sexualizado desde cedo, consumia cultura lixo. Já o brasileiro orgulhoso e trabalhador ganhava em dólar, falava inglês, viajava para o exterior e era descendente direto de nobres portugueses ou de imigrantes alemães e italianos. Bem, isso foi o que aprendi no meu círculo social na minha época.
Ainda assim, apesar de existir o que muitos chamam de complexo de vira-lata no Brasil, os brasileiros fazem de tudo para se agarrar no que os une como nação. Desde o gritar "Eu sou brasileiro com muito orgulho, com muito amor" numa final de Copa do Mundo (já vi muitas pessoas que a se juntar contra os norte-americanos numa "guerra memeal".
Afinal, o que significa pertencer a um país?
Isso tem a ver com as identidades nacionais.
Já comentei um pouco sobre identidades nacionais no último texto a respeito do dia da consciência negra (leia aqui), mas para fins didáticos, repetirei alguns conceitos básicos.
O teórico jamaicano Stuart Hall é atualmente uma das maiores autoridades acadêmicas no que diz respeito a estruturas simbólicas relacionadas à identidades culturais. As identidades culturais incluem as identidades nacionais, que seriam o que constitui as características do povo que compõe uma nação. “As identidades nacionais não são coisas com as quais nós nascemos, mas são formadas e transformadas no interior da representação” (Stuart Hall, A identidade cultural na pós-modernidade, 1998, p.48), ou seja, só sabemos o que significa ser de certa nacionalidade devido à forma como ela vem a ser “representada – como um conjunto de significados – pela cultura nacional” (p.49). De acordo com ele os sentidos dessa identidade “estão contidos nas estórias que são contadas sobre a nação, memórias que conectam seu presente com seu passado e imagens que dela são construídas” (p. 51). A narrativa nacional, é fornecida nas “histórias e nas literaturas nacionais, na mídia e na cultura popular” e “nos vemos, no olho de nossa mente, como compartilhando essa narrativa” (HALL, 1998, p. 52).
Para Hall, essas culturas nacionais são comunidades imaginadas com base nessas histórias, narrativas e mitos de fundação que acabam excluindo o que é diferente dessa narrativa. Ele diz que "não importa quão diferentes seus membros [os membros da nação] possam ser em termos de classe, gênero ou raça, uma cultura nacional busca unificá-los numa identidade cultural, para representá-los todos como pertencendo à mesma grande família nacional" (p.59).
Acontece que, como Hall argumenta, "a maioria das nações consiste de culturas separadas que só foram unificadas por um longo processo de conquista violenta - isto é, pela supressão forçada da diferença cultural" (p.59). Exatamente por isso ele coloca que “as identidades nacionais não subordinam todas as outras formas de diferença e não estão livres de jogo de poder, de divisões e contradições internas, de lealdades e de diferenças sobrepostas” (HALL, 1998, p.65).
Hall exemplifica sua teoria com o Reino Unido, como ele é representado na mídia e como na verdade essa união se deu por via de guerras e processos discriminatórios e tenta unificar povos tão diferentes como os escoceses e os ingleses.
Mas podemos pensar nisso em termos nacionais também, aqui no Brasil.
O que significa ser brasileiro?
Se ser brasileiro é gostar e torcer por futebol, o que acontece com as pessoas que não gostam de futebol, mas nasceram, cresceram e fizeram sua vida no Brasil? Elas deixam de ser brasileiras por não gostar de algo que é vendido na mídia como essência da cultura nacional?
Se ser brasileiro é ser malandro, o que acontece com os trabalhadores?
Se ser uma mulher brasileira é ser uma "mulata tipo exportação", o que acontece com as brasileiras brancas e de pele preta, que são magras ou gordas? Algumas brancas "privilegiadas" podem se orgulhar de suas raízes italianas ou alemãs, ou mesmo poderiam se sentir lisonjeadas quando alguém lhes dizia que elas não pareciam brasileiras, mas norte-americanas ou europeias. As pretas, até pouco tempo não tinham para onde fugir se não serem discriminadas e o máximo que poderiam ir em suas raízes era a escravidão - que impossibilitou que, a não ser via testes de DNA, rastreassem sua árvore genealógica até seu país de origem. Mesmo as "mulatas tipo exportação" são vistas nas narrativas midiáticas como objetos sexuais que servem para satisfazer os olhares e desejos masculinos.
Se ser brasileiro significa ser herdeiro de uma colônia europeia, onde estão nossos passes livres e nosso orgulho europeu?
Se ser brasileiro significa ser parte de um dos povos indígenas (já que eles estavam aqui antes dos europeus chegarem), onde está a representatividade sadia e não estereotipada dos povos indígenas na TV, nos sites de notícia, nas revistas de moda e beleza e, principalmente, nas escolas, universidades e órgãos governamentais? Onde está nosso conhecimento das culturas, das línguas, dos povos indígenas que são muitos e estão espalhados por todo o país? Onde está a voz e o respeito a esse povo?
Se ser brasileiro significa ser afrodescendente, ser brasileiro também significa que a maior parte dos brasileiros foi historicamente marginalizada e enfiada violentamente nos lugares menos privilegiados da sociedade como as comunidades, as esquecidas escolas públicas e as prisões?
Vou mais além: se ser brasileiro significa ser cristão, o que acontece com os indígenas não cristãos que estavam aqui antes de nós e com os africanos que foram trazidos à força de suas terras e resistiram à imposição violenta do cristianismo pelos europeus? Eles são menos brasileiros por seguirem suas religiões de origem?
Todas essas questões me vêm à mente quando ouço a emblemática frase "O Brasil acima de tudo, Deus acima de todos". Afinal, qual Brasil está acima de tudo? O Brasil dos negros nas favelas, dos índios desapropriados de suas terras ou da minoria rica e elitizada que cunhou essa frase?
Afinal, qual Deus está acima de todos? Eu não preciso sequer sair do cristianismo para questionar isso. É o Deus que barganha com seus fieis o dízimo em troca de bênçãos, como na Teologia da Prosperidade? É o Deus que barganha com seus fieis a penitência da carne em troca da salvação, como na teologia católica ortodoxa? Ou é o Deus dos oprimidos, que se levanta contra o capitalismo da Teologia da Libertação?
É o Deus que canoniza seres humanos especiais para servirem de intercessores, como é no catolicismo tão tradicional do Brasil? Ou é o Deus que demanda que, em desrespeito à religião alheia, se quebre estátuas de santos católicos na frente das igrejas neopentecostais do país?
Como adventista do sétimo dia eu pergunto: o Deus que está acima de todos é aquele que abomina os que valorizam a Lei de Moisés e santificou o domingo por conta da ressurreição, ou é o que demanda que sigamos sua aliança eterna incluindo os Dez Mandamentos e seu sábado santificado e abençoado?
Eu sei que alguém pode argumentar que o Deus é um só. Mas na prática, """""ele""""" demanda coisas muito diferentes de pessoas de denominações cristãs diferentes. Isso dentro do cristianismo. O que acontece então quando partimos para as outras religiões brasileiras, como as crenças dos povos indígenas ou as religiões afrobrasileiras, representadas em grande número por umbandistas e candomblecistas? Fora os espíritas kardecistas ou seguidores de filosofias como budismo, taoismo, ou mesmo os brasileiros ateus e agnósticos.
Portanto, a questão permanece, qual é o Deus dos governantes que afirmam que Deus está acima de todos? Essa frase significa que ele forçará, assim como os primitivos europeus mercantilistas e imperialistas, o cristianismo garganta abaixo de todos os brasileiros? Conseguirá o governo atual governar para todos esses cidadãos tão diferentes uns dos outros?
Quem me conhece sabe que sou cristão convicto. Eu acredito em uma verdade, chamada Jesus Cristo que deixou sua Palavra como regra de fé e prática para seguirmos. Não adepto a todo pensamento relativista da modernidade tardia. Mas essa verdade e essa Palavra também me ensinam sobre a aceitação à diversidade e o respeito à liberdade de escolha (comentei sobre no último texto). Eu pertenço a uma denominação que, nas suas raízes defendia a liberdade e o Estado Laico que garantisse o direito de culto a todos e abominava a união entre Igreja e Estado, pois faz parte da sua interpretação das profecias apocalípticas que essa união é uma das características da imagem da besta do Apocalipse e do anticristo (leia mais sobre aqui).
Como bacharel em teologia que pretende prosseguir no ministério, não me sinto à vontade para fazer propaganda política, por isso abstive-me de falar de candidatos na última eleição.
Este é um texto de preocupação com as medidas provisórias tomadas pelo novo governo e sobre como nós, cristãos, vamos encarar e enfrentar a realidade que parece se formar no horizonte.
Baseados nos princípios bíblicos, não podemos deixar nosso suposto orgulho nacional ferir a liberdade do outro, mesmo que o outro discorde de nós. Principalmente pelo fato de que, como Stuart Hall destaca, a identidade nacional é uma comunidade imaginada que não foi construída para incluir a todos os que fazem parte da comunidade real.
Portanto, para quem crê que a conservação dos valores tradicionais é a melhor forma de se construir uma nação justa, ficam os meus questionamentos acima. Os valores tradicionais brasileiros são realmente os melhores? Ou ainda, são realmente cristãos e bíblicos ou são apenas manifestações distorcidas de uma cristandade histórica construída em cima de violência e intolerância?
Qual Brasil você defende?
O Brasil que agora está acima de todos é realmente o seu Brasil?
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