A unidade em Cristo não elimina a diversidade de pensamento
Para ler ouvindo: Somos irmãos (Coral Universitário do Unasp-EC)
Hoje foi o último sábado de um trimestre durante o qual nós, adventistas do sétimo dia, estudamos, no mundo inteiro, sobre Unidade em Cristo, na nossa lição de escola sabatina. Um assunto muito pertinente para os momentos em que vivemos. Refletindo sobre algumas coisas que estudamos neste trimestre que encerra, pensei no quão assustador me pareceram algumas coisas envolvidas neste contexto. Desde o cenário sócio-político brasileiro até decisões administrativas tomadas pela igreja, passando por comentários problemáticos que escutei durante estudos desse assunto, uma série de elementos me deixaram preocupado com o rumo que as coisas estão tomando.
O que mais me preocupa quando discutimos esse assunto é a visão de diversidade que temos adotado já há algum tempo. A diversidade muitas vezes tem sido vista com maus olhos ou com um olhar muito limitado, que a limita a aceitação do básico - como pessoas de diferentes raças ou sexo biológico. Isso é bom, mas exclui, e tem excluído a diversidade cultural, de pensamento e mesmo de experiência com Cristo.
A diversidade biológica como parte do plano original de Deus para o mundo não é muito questionada - embora na prática da igreja ainda existam problemas relacionados ao relacionamento homem/mulher e raças na sociedade. É bem claro em Gênesis 1 que Deus cria a natureza de maneira diversa, cada componente da fauna e flora "segundo o seu tipo". É claro também, tanto no capítulo 1 quanto no capítulo 2, que homem e mulher são criados diferentes um do outro, embora da mesma espécie, e ainda assim, ambos são semelhantes, possuem o mesmo valor e são criados à imagem e semelhança de Deus.
Mas quando falamos de diversidade cultural e ideológica, a coisa fica um pouco mais complicada.
Tudo o que eu tenho visto e estudado tem me mostrado, porém, que esse tipo de diversidade é também previsto na realidade edênica. A própria natureza trinitariana de Deus e a criação de funções diferentes para homem e mulher já são o suficiente para percebermos que a atribuição de funções diferentes a pessoas diferentes vem acompanhada de diferentes formas de vivenciar e enxergar as coisas. Isso num ambiente edênico, antes da queda da humanidade e da entrada do pecado no mundo.
Seja antes do dilúvio, seja no episódio da Torre de Babel (Gênesis 11), no episódio do Bezerro de Ouro (Êxodo 32), dentre outros, a Bíblia mostra que a unidade de pensamento voltada apenas ao propósito de união do ser humano por um objetivo comum, centrado na própria humanidade e desafiando ordens divinas nunca é uma boa coisa. Especialmente o episódio da Torre de Babel carrega uma significação profundamente relacionada à diversidade. Embora a confusão de línguas provocada por Deus pareça um castigo, quando se entende o contexto, sobretudo a fala do próprio Deus (Gênesis 11:6) de que não haveria limites para o que o homem intentasse fazer (e eles não tinham boas intenções), é perceptível que há uma característica redentora na confusão: Deus coloca o homem de novo na direção do seu propósito original da criação do qual estavam fugindo que era se espalhar e encher a Terra (1:28, 9:6-7 e 11:4). Deus literalmente cria a diversidade cultural ao confundir a linguagem.
O teólogo Jacques Doukhan no livro Os Segredos de Daniel (Casa Publicadora Brasileira, 2018), compara o episódio de Babel com o episódio da fornalha ardente em Daniel 3 e relaciona as características de Babilônia com o tema da diversidade.
O paralelo entre os dois eventos é impressionante. No tempo de Babel “todo o mundo” ajuntou-se na planície unidos em um ato sagrado simples (Gen. 11:1). Nabucodonosor reúne, na mesma planície, não apenas seus oficiais, mas todos “povos, nações e gentes de todas as línguas” (Dan. 3:4) para uni-los em uma cerimônia sagrada em sua honra. Aqui discernimos um traço fundamental da religião de Babel: não tolera diversidade. É a mesma paixão por unidade que testemunhamos entre os construtores de Babel: “Eia edifiquemos para nós uma cidade e uma torre... e façamo-nos um nome” (Gen. 11:4).
Ambos os metais e as medidas da estátua evoca a preocupação com unidade. [...] Ele não apenas rejeita a idéia de sucessão, mas também o conceito de diferença: tudo é feito do mesmo molde. (p. 46-47)
Doukhan ainda explica como as medidas da estátua (6x60) evocam o sistema numérico hexadecimal da Babilônia, representando o conceito de unidade (p. 47) e relaciona a atitude e intenção de Nabucodonosor ao comportamento intolerante de líderes autoritários como Hitler, que possuem dificuldades de aceitar a diversidade e a impõe a própria crença e ponto de vista sobre os outros. Esse simbolismo numérico está também relacionado à imagem da besta e à própria Babilônia nas profecias apocalípticas referentes ao fim dos tempos (por exemplo, a conexão do número 666 com a ideia de humanidade caída). Esses conceitos deixam claro que a intolerância à diversidade de pensamento é característica de Babilônia e não do povo de Cristo. A própria metáfora de Paulo do corpo de Cristo e dos diferentes órgãos relacionados aos dons traz um fortíssimo apelo não só de respeito, mas de necessidade da diversidade.
O povo de Deus seria conhecido pela unidade através do amor uns pelos outros (João 13:35; 1 João 4:7-8). Mesmo no Antigo Israel, as leis dadas ao povo de Israel, embora numa lida superficial nos pareçam estranhas, em sua essência elas tinham a ver com a proteção das pessoas e da vida. Isso renderia outro texto grande e polêmico, mas algumas transgressões à lei pareciam não apenas passar despercebidas aos olhos de Deus, como eram abençoadas por terem como propósito salvar vidas (como foi o caso das parteiras, cujo texto diz que "temeram a Deus" ao mentir a Faraó para salvar os meninos israelitas em Êxodo 1 ou de Raabe ao salvar os espias em Josué 2).
Se a diversidade é edênica e deve ser respeitada pelo povo de Deus, ela provavelmente será também pós-segunda vinda de Cristo. As profecias clássicas de Isaías ou as apocalípticas do Apocalipse de João, que convocam toda tribo, língua e nação para estar em Jerusalém e na Nova Jerusalém não podem passar desapercebidas. Minha mente explodiu quando um dos meus professores de teologia certa vez perguntou em sala se a gente realmente achava que no céu teríamos sempre a mesma opinião sobre tudo. Que, sendo diferentes e diversos, seríamos realmente tão uniformes em pensamento assim.
Tudo isso deveria ser levado em consideração nas nossas discussões sobre cultura, vestimenta, música, expressões artísticas e culturais, liturgia, organização eclesiástica, ministério pastoral, conversão, batismo etc etc.
Eu entendo e compartilho da preocupação de muitos de perdermos de vista nossos princípios baseados na Palavra de Deus e na revelação que cremos ter sido dada através da Bíblia. Há princípios bíblicos inegociáveis sim, a Bíblia é um livro passível de interpretação, mas não é uma pintura abstrata. Alguns possuem um medo grande de ouvir termos como tolerância, diversidade, igualdade, termos que eles relacionam com uma estratégia de Satanás para minar a Igreja e levá-la ao relativismo e por fim ao ateísmo e secularismo. Mas, sinceramente, eu acredito que, se há uma estratégia de Satanás para minar a Igreja, esta é justamente convencer que pregar a tolerância (seja ela religiosa, ideológica ou de qualquer tipo) é uma forma de relativizar princípios bíblicos.
Esquecemos que a tolerância é um princípio bíblico. Só tem um nome ainda mais forte, mais profundo e que exige ainda mais do que apenas tolerância e respeito: é amor. O discurso de inclusão e justiça social são muito mais antigos do que comunismo, marxismo. Eles não são mérito de Marx, Gramsci ou Lukács. Eles já estão presentes na Bíblia e são requisitos pré-edênicos. O princípio de tolerância à diversidade está incluso não apenas no princípio do amor ao próximo, mas também no princípio da livre escolha dada por Deus a cada ser humano e que nós nos esforçamos tão arduamente para passar por cima.
Isso parece óbvio, mas na nossa pratica de igreja, nós esquecemos de refletir sobre a validade da vida do outro. E a vida do outro inclui suas opiniões, suas lutas, expressões culturais, auto-estima, experiência social e religiosa. E todo esse conjunto deve ser levado em consideração sem preconceitos, caso contrário machucaremos muitos com boas intenções. Muitos usam os textos bíblicos a respeito de exortação e disciplina como licença para exercer julgamento e intolerância. Mas esses textos não são pesados para quem vai receber exortação e sim para quem vai exortar. Há uma responsabilidade e demanda de sensibilidade e empatia pela causa dos que são diferentes de nós que temos negligenciado em nome de uma suposta unidade organizacional.
Enquanto concentrarmos nossos esforços em proteger princípios que foram criados para nos proteger (e não o contrário), estaremos cometendo erros primários enquanto igreja de Cristo. Estaremos protegendo conceitos, ao invés de proteger as pessoas que esses conceitos nos apontam como alvo do nosso amor incondicional.
Deus é sim um Deus de ordem, e ao contrário do que muitos da minha geração pensam, sim, a organização é importante. Mas ela não está acima dos princípios mais do que exaltados na Bíblia do amor e do cuidado com o próximo, incluindo "o pobre", "a viúva", "o órfão" e "o estrangeiro".
A organização deve ser mantida e ela é sim essencial para manter o nível saudável de unidade da Igreja que acreditamos carregar a responsabilidade do Evangelho e das Mensagens Angélicas. Mas ela não pode servir de apoio ideológico para a burocratização da graça e do amor de Cristo que essas responsabilidades carregam.
E a mensagem para a unidade do corpo de Cristo é importante e profunda demais para ser reduzida a um discurso cada vez mais comum que legitima a intolerância à diversidade, seja essa diversidade cultural, étnica ou de pensamento.
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