Construindo a Paz em Babilônia


"...a paz que carrego é uma carta que não fala nada de mim." 
                                              (Cartão Postal, Lorena Chaves e Marcos Almeida)

Das palavras hebraicas que os cristãos em geral conhecem, שָׁלוֹם (shalom) talvez seja uma das mais populares. Lembro-me de, quando criança, cantar uma canção que dizia "Shalom, meu amigo, Deus é contigo até o fim...". Nessa música, a expressão funciona como um cumprimento, desejando paz. Cristãos sabatistas às vezes incorporam a expressão judaica Shabat Shalom que é correspondente ao nosso "Feliz Sábado" ou "Bom Sábado", que expressa a satisfação do descanso sabático. Ou seja, usamos shalom para paz e também para prosperidade. Schökel define shalom como "paz, tranquilidade, serenidade, calma, concórdia; prosperidade, bem-estar, felicidade, sossego." Ele ainda destaca que os conceitos de paz e prosperidade são inclusivos, se complementam, às vezes enfatizando um ou outro, mas sempre juntos. Outros dicionários acrescentam ainda significados como "completude" e "integridade", que resgatam o significado da raíz da palavra, שָׁלַם (shalam). 

Shalom é mais do que paz/tranquilidade/calma e mais do que prosperidade/bem-estar. Shalom é completude. Paz completa.

Exatamente por conta dessa profundidade de significado que pode ter parecido absurdo o que Deus ordenou que Jeremias dissesse ao povo exilado na Babilônia na carta do capítulo 29 do livro do profeta.
Jeremias ainda estava em Jerusalém e endereçou a carta aos cativos que foram levados por Nabucodonosor junto com "o rei Jeconias, a rainha-mãe, os oficiais, os príncipes de Judá e Jerusalém e os carpinteiros e ferreiros"(Jeremias 29:2).
Essa investida da Babilônia é narrada em 2 Reis 24 e 2 Crônicas 36 e já havia sido prevista pelo profeta. Nabucodonosor havia levado parte da nobreza na primeira invasão, e agora ele levava tudo o que trazia sentido à existência de Israel, política e religiosamente. 
Toda a côrte real e também os operários que faziam o reino funcionar foram levados para a Babilônia. O centro da identidade deles como povo, o Santuário, foi despojado de todos os sinais de riqueza e prosperidade e de todos os símbolos da aliança feita por Deus com eles.
A profecia de Jeremias era clara. Quando as nações passassem pela desolada casa real de Judá, perguntariam, impressionadas, o motivo da desolação. A resposta sempre seria: "Porque deixaram a aliança do SENHOR, seu Deus, e adoraram a outros deuses, e os serviram" (Jeremias 22:9). 

Agora, já cativos, eles recebem uma carta do profeta avisando que eles não dessem ouvidos às falsas profecias que pregavam a esperança de um retorno breve para sua terra natal. Ao invés disso, eles deveriam edificar casas, gerar filhos e procurar a paz da cidade onde eles estavam exilados, orar por essa cidade ao SENHOR. A paz da terra de exílio seria sinônimo da paz deles (Jeremias 29:4-9). Shalom.
Eles aparentemente haviam perdido tudo o que lhes definia como povo e nação. Se agarravam às falsas profecias de um breve retorno pois se sentiam incompletos. O sentimento deles era de desolação e desejo de justiça, como bem expresso no Salmo 137. Mas a ordem divina foi que eles construíssem ali mesmo, em terra estrangeira, o seu shalom. Mais do que isso, eles deveriam orar pelo shalom de Babilônia, pois ali estariam pelos próximos setenta anos.

No verso 10, a carta continua com a promessa do Senhor de cumprir sua "boa palavra". O tempo inteiro Deus está usando a mesma linguagem das alianças que ele estabeleceu com a humanidade na Criação, com Abraão e com sua descendência recém-liberta do jugo egípcio.
O exílio era a consequência máxima da quebra da aliança, conforme estabelecida em Levítico 26, ao mesmo tempo em que Jeremias 29:10-14 lembra a esperança ao final das maldições onde o Senhor promete não rejeitá-los. Ele não quebraria a aliança mesmo que o povo o fizesse (Levítico 26:44).
A ordem de gerar filhos ecoa Gênesis 1:28 ao mesmo tempo em que garante a permanência da semente de Abraão incontável como a "areia do mar". 
Mas e a estranha ordem de construir e dividir o shalom concedido pelo Senhor?

Deuteronômio 4:5-8 estabelece um contraponto a Jeremias 22:9.
Em Jeremias, ao quebrar a aliança, a nação jaz em desolação e as pessoas passam e perguntam sobre tamanho castigo por parte do Senhor.
Porém, ao exortar o povo a cumprir a aliança que fizeram e obedecer ao Senhor, em Deuteronômio, Moisés diz que a sabedoria e o entendimento gerados pela obediência fariam com que os outros povos se perguntassem que grande nação tem deuses tão chegados a si como o Deus de Israel.
Levítico 26 e Deuteronômio 4 definem que a obediência às justas leis de Deus concederia a Israel a completude da sua identidade como povo, concederia o seu shalom e esse shalom abençoaria a todos os outros povos.

A ordem de Deus em Jeremias 29 também se comunica diretamente com isso.
Talvez os hebreus em exílio que tenham entendido isso de forma mais profunda tenham sido Daniel, Hananias, Misael e Azarias. Daniel 1 os coloca no contexto dos exilados que já estavam em Babilônia quando Jeremias escreveu sua carta. Eles foram escolhidos dentre os mais instruídos de Israel levados para a côrte. Apesar de todas as tentativas de transformá-los em verdadeiros babilônios e incorporá-los ao sistema (versos 4 a 7), eles decidiram permanecer firmes em sua identidade. Escolheram não se contaminar com o que lhes era oferecido. Escolheram obedecer e construir, ali na Babilônia, o seu shalom.
Os primeiros capítulos de Daniel tornam claro que essa decisão não abençoou apenas a eles, mas a todos ao seu redor. O juízo veio sobre Babilônia, pois no fim das contas, a justiça clamada no Salmo 137 e profetizada em Jeremias 25 se concretizaram, mas a queda dos Babilônios não abalou o shalom de Daniel, que permaneceu na casa real "até o primeiro ano do rei Ciro" (Daniel 1:21). Todas as vezes em que ele e seus amigos mostraram seu shalom, os reis e nobres reconheciam o poder do Deus de Israel (por mais que esse reconhecimento não perdurasse).

A obtenção dessa paz implica em obediência e reconhecimento da soberania de Deus, que faz questão de lembrar que Ele é quem sabe os pensamentos e planos que tem a respeito do seu povo, e são pensamentos e planos de shalom, não de mal (Jr 29:11). Deus está tentando o tempo inteiro lembrar à nação quem eles realmente são e onde se encontra sua real identidade, completude e prosperidade. A fidelidade à aliança é a chave para o shalom e a aliança é a chave para entender o caráter e a misericórdia de Deus para com seu povo. 
O shalom contido no "menor dos povos" (Dt 7:7), vivido mesmo nas piores circunstâncias que o exílio pode trazer, é o maior cartão postal do Reino do Senhor.

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